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O chá, o fino, o tinto e o chope: uma viagem

João Baptista M. Vargens

Atualizado: 12 de jul. de 2024

No segundo semestre de 1993, estava eu ministrando um curso de língua portuguesa e cultura brasileira na Universidade AbdelMalik As-Saadi, em Tetuão, cidade do norte do Marrocos, quando tive a satisfação de receber a visita de meus pais. Certa manhã, saí de casa acompanhado de meus hóspedes, para cumprir os afazeres habituais no centro daquela cidade verde e branca, localizada em um profundo vale.


No caminho de retorno, meu pai observou:


– Aquele ali deve estar vivendo algum problema. Quando passamos por aqui, há três horas, estava na mesma cadeira, na mesma mesa. Quem sabe tomando o mesmo chá com hortelã?

Respondi-lhe imediatamente:


– Então, grande parte da população masculina aqui tem graves problemas. Repare o número de cafés na cidade e a grande frequência em qualquer parte do dia.


Por força de meu doutoramento na Universidade de Lisboa,uma vez por mês percorria o caminho feito, há quase 13 séculos, por Tárik Ibn Ziad e seus companheiros, que seduziram os habitantes daPenínsula Ibérica, apresentando-lhes uma cultura rica e multifacetada. Algumas vezes, atravessava o Estreito e, em Algeciras, tomava um ônibus, que me deixava, 7 horas depois, em Lisboa. Em outras ocasiões, galgava as terras da Andaluzia e da Estremadura sem pressa. Quando avistava uma das inúmeras vilas aprazíveis da região, era o momento de parar. Isso acontecia normalmente no arrebol. Entrava num bar, geralmente na varanda, e, invariavelmente, pedia um fino,vinho típico da região, que era sorvido, acompanhado de um legítimo pata negra. Adentrava a noite e aquela gente conversando, conversando...  As histórias sucediam-se. A História fixava-se.


No dia seguinte, a viagem continuava. As oliveiras davam lugar às pastagens, onde cerdos nutriam-se e caminhavam, mal sabendo que se tornariam apetitosos patas negras. Planícies e planaltos alternavam-se e, como um oásis, surgia Badajós, com suas floreiras adornando os muxarabiês. Do outro lado da fronteira, que não mais existe, avistava-se o alcácer de Elvas, no alto do monte, a desafiar os tempos. Nada melhor do que tornar a ouvir a língua de Camões, mais tarde adocicada por Machado.


Em um bar-café cor-de-rosa, em torno da mesa, o fino, que fora chá, torna-se um tinto, que rega a palavra de sempre, no intrigante e revolucionário Alentejo.


Era preciso chegar ao destino. Prosseguia a viagem, até vislumbrar o Tejo e suas pontes majestáticas. Era hora do jantar. Nada melhor do que as tascas da Mouraria ou do Bairro Alto. Em suas vielas, ouvia-se o fado, acompanhado de suas guitarras, que pareciam, melancolicamente, buscar um passado de que foram testemunhas muros e pedras.


Após cumprir as missões acadêmicas no Marrocos e em Portugal, retornei ao Brasil.


Cheguei junto com o real. Como num passe de mágica, a moeda brasileira valia mais que o dólar americano. Difícil de entender.

Principalmente para aquele que, a cada mês, via diminuírem seus minguados cruzeiros, convertidos em cédulas, cuja estampa, invariavelmente, era o rei Hassan II.


Depois das saudações de praxe, familiares, amigos, colegas, alunos, urge um passeio pelo Rio de todos os janeiros. Queria rever o centro, talvez pelo fato de, naquele lugar, ter estudado e trabalhado durante muitos anos. Por força do hábito, conduzi-me à esquina da Lavradio com a Mem de Sá. Entrei no Bar Brasil, rebatizado na 2ª Guerra, chamava-se Alemão e assim é conhecido até hoje pelos frequentadores assíduos. Fui recebido pelo Adauto, garçom legendário, com entusiasmo. Naquele lugar, onde é servido um dos melhores chopes do Rio, acomodei-me. Percebi que a mesa era a mesma, em torno da qual sentava com os amigos da Faculdade de Letras, entre eles o saudoso Professor Celso Cunha. A espuma da bebida, tão apreciada pelos cariocas, tirada com a pressão exata, formava um elegante colarinho. Era a dose certa.


Sozinho, notava a sucessão de rodadas de chope e os discos-horóscopos avolumarem-se sobre as mesas, prenunciando uma conta salgada.




Refletia sobre meu itinerário: Marrocos, Espanha, Portugal, Brasil. Pensava sobre a história, a geografia, a cultura, os hábitos. Naquele instante, transpareceu-me, nitidamente, liames de comportamentos, díspares à luz de olhos incautos, mas próximos sob a mira de uma observação sensível. No Bar Brasil, havia pessoas em torno da mesa. Havia comida, conversa, bebida. Do outro lado do Atlântico, em pátria árabe-africana a mesma coisa, assim como acontecia do outro lado de Gibraltar. O chope, o tinto, o fino e o chá regavam mentes e entorpeciam o tempo. Os calendários, solar e lunar, paravam. As histórias multiplicavam-se, traçando a crônica dos tempos e, na maioria das vezes, contrariando a letra peremptória da historiografia.

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